Há muito a ideia de que, nos nossos dias, a violência entre crianças é muito maior do que há umas duas ou três décadas. Não concordo. As coisas continuam a acontecer com bastante intensidade, mas a forma de as fazer é que mudou. Ouvimos falar muito das redes sociais e da forma como elas podem mesmo servir de caminho privilegiado para ataques pela calada entre crianças e jovens. Tudo verdade. Mas e se esta violência psicológica que cresce nas redes começa nos pais?
Há muitos anos que trabalho em educação e ontem tomei conhecimento de uma história verídica, que superou tudo o que ouvi até hoje. Não queria acreditar no que estava a ouvir e presenciar e fiquei mesmo desiludida com o rumo que as coisas estão a tomar. Resumidamente, tenho uma aluna que é excelente em quase tudo - notas e personalidade. Por ser muito sorridente, simpática e sociável, tem quase toda a turma do seu lado, que a vê como uma líder nata. Apesar de nesse cenário haver duas alunas, não familiares entre si, que rivalizam com esta colega em termos de notas e protagonismo, ela não se deixa afetar e até as tenta integrar na turma e na convivência entre colegas. Mas a verdade é que as miúdas não querem essa aproximação e não aceitam ser superadas pela minha aluna, que nada se vangloria das suas capacidades e conquistas, mas que as tem, de facto. Isto seria normal, tendo em conta as idades das miúdas. Mas os contornos que a história ganhou entretanto ultrapassaram qualquer parvoeira adolescente. Aparentemente, as raparigas entraram num espírito de vitimização e foram falar com os seus pais, que assumiram de imediato a sua verdade como a única e que, através do perfil de Instagram das filhas, "bisbilhotaram" as publicações e Instastories da miúda que queriam derrubar, tiraram printscreens totalmente descontextualizados (do género, a minha aluna ter tirado uma fotografia com umas das miúdas e escrito - "Esta anã está quase a fazer anos! Yeeei! Parabéns!!!!" e os pais terem tirado o "Yeeei! Parabéns!!!", alegando que a rapariga estava a gozar publicamente com as filhas) e tendo levado ao Diretor da Escola um conjunto de folhas imprimidas com fotografias que, a seu bel-prazer, criaram a ilusão de uma história de complô contra as miúdas. Em resultado disto - e acreditem que o que se segue conseguiu ser ainda mais estapafúrdio para mim - a Direção resolveu convocar uma reunião de emergência com os pais das três alunas envolvidas, tendo ficado claro que, para ela, a culpa era da minha aluna e que as duas outras raparigas - quais mártires - estavam cobertas de razão. Agora, aparentemente, a miúda apontada como a culpada vai ser sancionada e, como imaginam, está num pranto e desânimo tais, que a sua autoestima ficou de rastos e não quer voltar à Escola, quando está em plena fase de testes. Quanto aos pais da minha aluna, estão decididos a fazer uma queixa oficial a quem de direito e a tirar a filha daquela instituição de ensino o mais rapidamente possível, sob pena de destruir a tão boa personalidade e caráter da miúda e poder contribuir para criar um pequeno monstro de insegurança dentro dela, que nunca mais lhe permita ser o que era - em estudos e na vida.
Esta história é, para mim, das que mais me chocou desde sempre. Como é possível que haja pais que se dedicam à missão de cegamente destruir a vida de uma criança, apenas para dar espaço a caprichos de pirralhas adolescentes, que ainda para mais são suas filhas? O que lhes estão e ensinar? Que caráteres estão a formar? Que valores lhes estão a transmitir? E que caráter é o seu para serem exemplos?
E mais: como é possível que a Direção de uma Escola ouça apenas os pais e nem se tenha dedicado a ouvir os outros elementos da turma, que confirmariam o bom caráter da minha aluna, sempre apaziguadora e amiga de todos e, ao invés, apenas ouçam e deem um parecer positivo a uma insinuação grave, adulterada e infundada? Como é possível que nem sequer se detenham a perceber por que motivo toda a turma rejeita essas duas alunas, por serem experts em virar as histórias a seu favor? Como é possível tudo isto?
Confesso que hoje acordei "doente" com esta história. Só me apetece pegar na minha aluna e levá-la para um novo ambiente, onde se sinta de novo valorizada. Acredito que os pais devam estar a pensar fazer o mesmo. É certo que tudo isto são ensinamentos de vida e que é preciso "bater" com a cabeça para aprender, mas esta história é mesmo muito retorcida e deve ser denunciada. Mas sobretudo, é uma vergonha imensa haver pais assim, que nunca o deveriam ser e que são os piores exemplos possíveis para qualquer ser humano em formação. A minha repulsa é tanta, que nem tenho adjetivos para os descrever, acreditem. Mas a crítica estende-se - e muito! - à ridícula Direção desta Escola, aparentemente de âmbito católico, que envergonha um país.
É isto que temos, por cá. Depois admiram-se que eu não me reveja na minha classe profissional e que aponte demasiado o dedo a certos preceitos religiosos, mesmo sendo católica. Ou eu estou muito à frente, ou eles estão muito atrás. Alguma destas há de ser.
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