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Verde Vermelho

Podia ser um blog sobre Portugal. Podia ser um blog sobre mim. Podia ser um blog sobre coisas boas e más. Podia ser um blog humorístico. Podia ser um blog a tentar ser humorístico. Podia ser um blog sobre qualquer coisa. Pois podia.

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24 de Outubro, 2017

As curvas sinuosas da solidariedade.

Joana

A solidariedade pratica-se, não se publicita. É uma lição de vida que sempre ouvi, defendi e pratiquei. Considero que a bondade e o altruísmo se medem nos atos, e não nas palavras. Por isso, faz-me uma certa confusão que, nesta coisa dos incêndios, ande meio mundo a dizer que vai fazer e acontecer quando, no fundo, apenas está a publicitar que o fará sem, efetivamente, se comprometer a fazê-lo.

 

No entanto, e já calejados da situação decorrida em Pedrogão, penso que estamos todos conscientes que é difícil ajudar de forma silenciosa e sem receio de desvios e de interesses paralelos. Há tanta informação e contra informação, que somos quase obrigados a divulgar a nossa intenção de ajudar, na expectativa de sermos contactados por quem realmente presenciou ou testemunhou os relatos de quem viveu a realidade ou conhece quem o tenha feito e seja movido pelo instinto puro de ajudar. Sinto isso neste momento de uma forma quase revoltante, num misto de sentimentos. Temos em casa algumas coisas que estávamos pensar vender e que, por boa sugestão do J., decidimos doar. Depois da decisão quase imediata de o fazermos, vemo-nos agora a braços com a procura - quase incessante, neste momento - de pessoas que estejam a organizar recolhas de bens e eletrodomésticos para os entregarem diretamente (e esta é a palavra chave!) às populações vítimas deste horror. Sei que a noção que temos é que existe muita ajuda e muito voluntariado, mas deixo-vos um testemunho na 1ª pessoa, de um colega de profissão com um enorme espírito de altruísmo, que confirma o porquê de nem nas Juntas e Municípios deste país (não serão todos, mas ainda assim...) sentirmos poder confiar, o que nos deixa ainda mais de pé atrás em relação a toda e qualquer ajuda que possamaos vir a dar:

 

Numa viagem onde a paisagem é negra, o cheiro a fumo paira no ar e as pessoas caminham com desalento visível, vivi experiências verdadeiramente marcantes que partilho convosco, pois podem ser uma ajuda, um alerta e uma solicitação.
Os alunos do Colégio de Lourdes, Santo Tirso, estiveram a separar roupas, calçado, cobertores e colchões para entregar em Vouzela – um dos concelhos mais fustigados pelos incêndios. Assim que chego a esse local, meio perdido, coloco a questão: “Onde deixar todos aqueles bens que trazia comigo?”
Facilmente perceberam, na rua, que trazia auxílio, pelo que um carro se coloca ao meu lado e uma senhora interroga-me: “Trazem ajuda?”, ao que respondo “Sim, temos a carrinha para descarregar.” De imediato diz-me onde o fazer, indicando o trajeto, mas lança uma questão: “O que é que trazem?”. Eu respondo: “Roupas, cobertores, colchões.”. A tal senhora, identificada com colete de um grupo de recolha, afirma: “Disso temos muita coisa.”. “Então o que precisam?”, inquiri eu. A mesma senhora, talvez ainda afetada pela tragédia, responde, com firmeza e sorriso no rosto: “Não precisamos de nada!”. E … avançou no carro.
Naquele instante, questionei-me interiormente se valera a pena esta viagem. Afinal, segundo aquela pessoa que trabalha como voluntária num ponto de recolha, não precisavam de nada. Não desistimos e, acompanhado pela Irmã Adelaide, dirigimo-nos à Comunidade das Irmãs Franciscanas, em Vouzela, que nos dizem onde descarregar a carrinha do Colégio. Lá nos encaminhámos para o tal local, cujo nome não mencionarei por respeito, e começou aí verdadeiramente o trabalho de observação.
Mal chego, vejo uma fila de carrinhas para descarregar alimentos, produtos de higiene, roupas, cobertores,… Tudo o que possam imaginar estava para ali a ser levado por diversos carros de vários pontos do País. Foi um momento arrepiante ver aquele mar de solidariedade nacional, seres unidos na partilha e na ajuda fraterna. Era um armazém enorme cheio de produtos.
Primeira interrogação: “O que é que isto está aqui a fazer? Estes bens deveriam encontrar-se junto das pessoas.” No entanto, lá abordei uma responsável pelo local que me perguntou o que trazia e, perante a minha resposta, logo declara que ali já não aceitam mais roupas e cobertores, só alimentos. “Então o que é que eu faço com isto?” “Olhe, está a ver ali aquela senhora? Vá na carrinha atrás dela, que ela leva-o onde vai deixar isso”. Olho e reparo que era a tal senhora que me tinha dito que já não precisavam de nada.
Percebi nesse instante que esta questão de organizações solidárias não funcionava naquele local. Então, desloco-me para o exterior, como quem espera por alguém, vou ter com um senhor que passa na rua, de idade avançada, e pergunto qual a freguesia mais afetada pelos incêndios. O homem, educadamente, lá me explicou tudo e avanço na carrinha para essa freguesia dizimada pelos incêndios, na certeza de que, nesta, os bens ficariam mais próximos das pessoas, ao contrário do que sucederia se permanecessem num ponto de recolha no Município.
Aproximo-me da referida freguesia e facilmente percebo que a mesma tinha sido totalmente afetada. Uma área de destruição enorme, carros, casas, quintais, mato, … tudo. Mas estranhei encontrar fila para entrar nesse local. Pensei: “Muita ajuda foi trazida.” Porém, estava errado: naquele momento, realizava-se o funeral de uma das vítimas “da terra”. Uma vez chegado ao local da freguesia para descarregar a carrinha, fui bem acolhido, agradeceram o gesto e começaram a ajudar, dizendo que estavam a armazenar para, quando as casas estivessem recuperadas, distribuir pelas pessoas – vejo novamente um armazém cheio de produtos e mais carrinhas de Portugal a descarregar.
Aquilo fazia-me muita confusão porque não via ninguém ali para distribuir, para receber e levar para casa; estava tudo guardado.
Segunda interrogação: “O que é que isto está aqui a fazer? Isto deveria estar juntos das pessoas. Será que esta gente terá a capacidade de realizar uma distribuição justa e equitativa por todos?”
Todavia, confiei, pois, na Junta de Freguesia, sempre estavam os bens mais próximos dos necessitados. Contudo, não estava satisfeito, tão pouco a Irmã. Sabíamos ter a missão de ir ao terreno e perceber o que as pessoas precisavam realmente, trazendo essa análise para o Colégio. Por isso, novamente me afasto, para observar e ouvir um pequeno grupo que ali estava por perto e encontro um jovem da terra que me diz que conhece os locais, as gentes e onde estão aqueles que realmente necessitam de auxílio. Naquele instante, chamo-o à parte e peço que me leve à aldeia mais afetada. E assim foi.
Por entre caminhos destruídos pelo fogo, por entre fumo que ainda saía da terra, lá chegámos àquele alto do monte, abandonado, esquecido e isolado. Assim que avistaram a carrinha, aproximaram-se, desconfiados, pedindo cobertores para o frio e roupas quentes. Ficamos desarmados. Não tínhamos nada. Esclarecemos que tinha ficado tudo na Junta de Freguesia, que podiam ir lá buscar, que eram para eles. Nesse momento, ouvimos os desabafos todos de ajuda que não chega: “Não querem saber de nós!”, afirma uma idosa, rosto visível em diversas reportagens da televisão. Aquela aldeia estava totalmente abandonada! No dia dos incêndios, não tiveram apoio de ninguém. Lutaram sozinhos. Um homem, mal nos avista, sai disparado em lágrimas a dizer que perdeu as suas dez ovelhas e abraça-se à Irmã.
Questiono-me pela terceira vez: “Então, pretendem dar roupas e cobertores quando as casas estiverem prontas e esta gente preciso disso agora? E está tudo lá para baixo armazenado?! Não entendo!!”
Eu e a Irmã identificámo-nos e esclarecemos que desejávamos ajudar, mas precisávamos de saber o que necessitavam. Neste sentido, levaram-nos a conhecer aquela aldeia que está agora destruída. Avisaram-me que ia ser duro: ia ver, ia sentir…. Percorri a povoação, um conjunto de 9 casas habitáveis, por entre outras devastadas, em ruínas, currais em cinzas com animais ainda lá dentro, espigueiros destruídos, oliveiras queimadas, espigas em carvão…; tudo arruinado, eles ali a pedir ajuda e tudo o que podia ser doado encontrava-se lá em baixo, na Junta e no Município, ambos parados. Esta pequena aldeia precisa de calor humano, precisa de se levantar. Podia aqui contar tudo o que vi e senti, mas a dor e abandono são as palavras que melhor definem o sentir daquela população.
Entretanto, apresentam-me o Senhor mais velho da aldeia, Sr. José! Estive a ouvir tudo o que me contou, com os seus olhos feridos pela dor, rodeado pelos seus dois filhos e, lá longe, a sua esposa. Perguntei o que precisavam e ele diz-me: “Precisamos de alfaias agrícolas, motosserras, material para trabalhar o campo. Não temos nada. Ardeu tudo. Ajude-nos, por favor. Queremos trabalhar.”
E saímos daquela aldeia com este pedido a ecoar nas nossas mentes: “Ajude-nos, por favor!”

 

Duarte Almeida

 

Isto revolta-me muito e emociona-me de uma forma particular. Revolta-me perceber os caminhos sinuosos da solidariedade e que nada é tão puro como deveria ser e emociona-me a ideia de uma aldeia perdida algures, esquecida por quem nunca o deveria ser, e de uma população que só se quer reerguer, desde o 1º minuto em que viu a sua vida destruída à sua frente.

 

E esta é só uma. Uma aldeia. Uma entre centenas de tantas que estarão no mesmo ponto. Ânsara é o seu nome.

 

 

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